domingo, 26 de abril de 2020

Acordaram agora


Há um ano, em Abril de 2019, a Maria João Lopo de Carvalho publicou um texto na Revista "Cais", que dizia o seguinte:
Todos nós, se fizermos algum esforço de memória, nos lembramos de quem foi o professor que mudou a nossa vida, e há sempre um. De igual forma, a  grande motivação para ser professoro século XXI é saber que há-de haver pelo menos um aluno a quem "nós, professores" vamos mudar a vida.
Tenho para mim que os professores são heróis nacionais. E há muitos outros para além dos professores, sim, eu sei. Ando, no entanto, a repetir este justo elogio desde 1990, pois tenho uma profunda admiração por aqueles que conseguem o que eu não fui capaz. Não falo aqui das correntes reivindicações salariais dos 9 anos, 4 meses e 2 dias de que os professores são devedores, isso são contas de outro rosário; falo do dia a dia nas escolas, matéria que conheço bem, não só como professora no ensino público e particular, como mãe, como integrando a equipa de educação da C. M. de Lisboa e, nos últimos quinze anos, como autora de literatura infanto-juvenil, o que me leva a visitar as escolas numa perspectiva diferente e bem mais romântica.
Muito se tem teorizado sobre o assunto, mas só quem "viveu" os corredores de uma escola consegue avaliar a dimensão do desafio. Dar aulas, hoje, é de tal forma complexo que à primeira vista não seduz ninguém. Como em todas as carreiras, há bons e maus profissionais, mas nem todas as outras carreiras exigem vocação e entrega total, resiliência e espírito de sacrifício, para além das necessárias qualidades técnicas, científicas e pedagógicas. Enfrentar, a uma segunda-feira de manhã, uma turma de adolescentes macambúzios do 8º ano, mal-dormidos, pouco atentos, desmotivados, agarrados ao telemóvel (dirão que não são todos assim, está claro!) não é igual a chegar a um escritório onde escudados pelo ecrã de um computador podemos muitas vezes resolver-nos a nós próprios sem que ninguém nos importune. Na escola, todo e qualquer assunto intimamente "nosso" fica naturalmente à porta da sala de aula. Depois do toque, a única matéria que importa são os 30 adolescentes, alguns deles ainda adormecidos, esparralhados nas cadeiras, que o professor tem de acordar, ensinar, motivar, compreender.. É preciso esforço, empenho total e dedicação à causa. O actual estatuto do aluno e  do professor tem pouco de justiça e subtrai ao professor a autoridade necessária para resolver casos difíceis que acontecem diariamente nas escolas: se um aluno insultar um professor, coisa que infelizmente é comum, o professor queixoso terá de enfrentar uma bateria de procedimentos burocráticos de tal forma morosos que o empurram para o caminho mais fácil: ignorar.
Numa sociedade como a nossa, em que tanto se fala de violência, aqueles miúdos vítimas muitas vezes de maus tratos familiares, trazem essa carga pesadíssima para a escola, território de absoluta impunidade, onde o "rei" manda desaprender, descomportar, ameaçar, violentar e pior: fazer com que tudo isso toque na corda mais sensível dos profissionais: a psicológica.
Revi há pouco o filme francês "A Turma" de  Laurent Cantet, galardoado com a Palma de Ouro no festival de Cannes, em que seguimos um ano lectivo de um professor e da sua turma. A acção passa-se numa escola de um bairro problemático de Paris, espelho dos contrastes multiculturais dos grandes centros urbanos e é precisamente este o desafio: acompanhar o quotidiano de uma turma em que o poder do professor vai muito para além de ensinar: o professor tem de salvar ou quem morre é ele próprio.
Nenhum país progride sem educação. Eu dou-me por satisfeita de pagar impostos e que estes impostos sirvam para financiar uma escola pública que eu quero cada vez melhor, mas atenção: a batalha diária desigual, difícil e extenuante dos professores nunca é falada e, se o fosse, era recebida pela maior parte da população com um vago encolher de ombros. Numa sociedade tão competitiva como a dos nossos dias, que precisa de rankings para estimular, elogiar e seleccionar as escolas, muitas vezes comparando realidades que não são comparáveis, os professores tudo fazem, substituindo com frequência os pais e sempre pelas melhores razões: criar o interesse e a curiosidade nos alunos, já que são estes os motores de arranque. As razões de um e outro lado nunca acabam, dariam muitas páginas de texto,; todavia, gosto de sublinhar este facto: aos 23 anos eu ainda tinha esperança na minha vocação, mas ao fim de apenas quatro percebi que perdera a batalha. Enquanto lemos este texto, nas escolas à nossa beira, os professores lá estão, de mangas arregaçadas, nas piores ou nas melhores condições. Julgo que toda a sociedade lhes devia estar grata. Os professores portugueses merecem a minha total admiração e respeito."
Pois, a maior parte das pessoas descobriu agora que os professores têm grande capacidade de adaptação, sentido do dever e que, nesta situação, com todas as suas peculiaridades, têm feito "um grande esforço" para, à distância, continuar a acompanhar e apoiar os alunos, apesar das circunstâncias. Como se não tivesse sido sempre assim...
Ser professor é uma das mais exigentes e sacrificadas profissões do mundo (talvez juntamente com a de médicos e enfermeiros), mesmo se até aqui poucos o reconheciam. Não sou dos que falam em "vocação", como se para ser professor fosse preciso alguma espécie de "chamamento". Prefiro a palavra "dedicação", a qual estou certa que corresponde ao trabalho da maior parte.
Sei-o por mim, que fiz sempre o melhor de que fui capaz em todos os dias e horas em que estive nas salas de aulas, mas também pelo que observei na quase generalidade dos meus pares. Haverá sempre, como em todos os domínios, professores melhores e piores, alguns incompetentes e outros mais "baldas", assim como muitas vezes eles são vítimas de si próprios, inventando-se tarefas desnecessárias que não servem para coisa nenhuma, na ânsia de ser "mais papistas que o papa" e mostrar trabalho muito para lá do que lhes é pedido, ou só porque sim.
Mas poupem-me: aquilo que agora tantos reconhecem e elogiam, não é mais nem menos do que os professores sempre fizeram, malgré tout, mas que ninguém queria ver.

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